Salvador
Crônica: o que o Senhor do Bonfim viu ao descer a Colina Sagrada
Após mais de dois séculos, a imagem do Senhor do Bonfim foi carregada pelos fiéis durante cortejo
Após mais de dois séculos, o
Cristo baiano deixou o altar na Colina Sagrada e foi conhecer esse povo
que tanto o reverencia. Senhor do Bonfim, Oxalá no Candomblé, percorreu
os oito quilômetros que ligam a Igreja da Conceição da Praia, no bairro
do Comércio, até a casa dele, a Igreja do Bonfim. O mais conhecido
templo de oração católica do estado da Bahia e que tem por vocação
congregar diferentes cultos, credos e povos entorno de algo que está
acima de toda e qualquer divergência: a Fé em Deus. Seja esse Deus
representado por um homem barbudo, por uma força da natureza ou mesmo
por um apanhado de explicações acadêmicas.
Ao longo desse percurso, não foram poucas
as demonstrações de amor, fé e devoção que se apresentaram aos olhos do
santo. Em uma época onde os episódios de intolerância religiosa são cada
vez mais comuns, o santuário da Conceição da Praia foi palco de um ato
inter-religioso. Espíritas, católicos, candomblecistas, hinduístas.
Todos em uníssono pediram por paz, respeito e a disseminação do
sentimento de fraternidade entre os povos. "O povo brasileiro tem a
vocação para semear a paz e causa admiração ver o respeito às minorias",
disse o padre Jairo Jesus Menezes.
O
discurso proferido no adro da igreja ganhou força ao ser ecoada a
"Oração a São Francisco", repetida pelos milhares de fiéis que àquela
altura se organizavam para seguir em procissão. "Vou fazer de mim um
instrumento de vossa paz", celebravam baianos e turistas.
A saída do cortejo, o Senhor do Bonfim de
imediato percebeu que não há fronteiras entre fé e festa naquele
trajeto. Sagrado e profano se unem de tal maneira que é impossível
separar onde começa um e termina o outro. Como canta Caetano Veloso em
ritmo de marchinha, na Lavagem do Bonfim chove chuva, suor e cerveja.
Além de arroz, milho branco, água de cheiro e sentimentos dos mais
variados.
A cada passo dado uma emoção nova, uma
batida diferente. Estímulos e informações surgem de toda parte e afloram
todos os sentidos. A Lavagem é de arrepiar, mas também de suar, gritar,
chorar, sorrir.
Em uma festa assim, nada mais natural que o
povo extravase também as suas insatisfações. E também não foram poucos
os aborrecimentos presenciados pelo dono da festa. O Senhor do Bonfim
viu classes trabalhadoras protestando por melhores salários,
manifestações políticas pró e contra o governo. Cada grupo, às vezes uma
única pessoa, vestiu a sua camisa, empunhou a sua faixa e manifestou a
sua opinião.
O Senhor do Bonfim viu ainda quem prefere
não misturar as coisas. "Festa é festa e protesto é protesto", disse a
sorridente Ângela Souza, 41 anos. A servidora pública frequenta a
Lavagem há 19 anos e vem da Ilha de Itaparica só para curtir.
A diversidade de opiniões e gostos se faz
presente também na trilha sonora ouvida ao longo do cortejo. A batida
compassada e tão característica dos agogôs dos Filhos de Gandhy dividem
espaços com as muitas fanfarras, que tocam desde sucessos da MPB a
jingles consagrados da TV, passando por hits da música baiana.
Em meio a esse repertório variado, eis que
emerge da avalanche de barulhos a mundialmente conhecida "Parabéns Para
Você". Sim! O Senhor do Bonfim viu ainda um aniversariante na sua festa.
O felizardo, o empresário e ex-prefeito da Ilha de Itaparica Claudio
Neves, completou 61 anos, e há 45 sobe a Colina Sagrada na segunda
quinta-feira do ano.
"Estou muito honrado e bastante agradecido
de neste ano poder comemorar o meu aniversário ao lado de minha família e
num festejo tão importante para o nosso estado. E esse ano a Lavagem
ficou ainda mais especial por termo a imagem do Bonfim acompanhando o
cortejo", disse emocionado o aniversariante.
Ajuda de Dulce
No Largo de Roma, já no trecho final rumo ao topo da Colina Sagrada, o Cristo se depara com uma homenagem das baianas a uma das suas fiéis escudeiras. Na porta das Obras Sociais Irmã Dulce, as responsáveis por lavar as escadarias param em frente à imagem do Anjo Bom da Bahia e pedem força para seguir a caminhada.
No Largo de Roma, já no trecho final rumo ao topo da Colina Sagrada, o Cristo se depara com uma homenagem das baianas a uma das suas fiéis escudeiras. Na porta das Obras Sociais Irmã Dulce, as responsáveis por lavar as escadarias param em frente à imagem do Anjo Bom da Bahia e pedem força para seguir a caminhada.
Já se aproxima do meio-dia e o Sol do verão
baiano chega ao pino. "É uma tradição nossa parar aqui [na estátua de
Irmã Dulce] para pedirmos força e proteção para seguir caminhando",
disse Severina Ramos, 64 anos, que há 26 realiza a caminhada. A baiana
contou ainda que Oxalá representa tudo para ela. "Ele é o pai dos
orixás. É quem manda prender e soltar".
Voltando para casa
Percorridos os oito quilômetros, o Senhor do Bonfim se prepara para voltar ao seu altar. Seguido de perto por milhares de baianos e turistas, segundo dados da Polícia Militar, ele olha no rosto de cada um daqueles que foi até lá justamente para reverenciá-lo. A emoção transparece em cada olhar.
Percorridos os oito quilômetros, o Senhor do Bonfim se prepara para voltar ao seu altar. Seguido de perto por milhares de baianos e turistas, segundo dados da Polícia Militar, ele olha no rosto de cada um daqueles que foi até lá justamente para reverenciá-lo. A emoção transparece em cada olhar.
As baianas ajoelham na entrada no portão da
Igreja que já está repleto de fitinhas que carregam em si muito mais do
que três desejos. Cada tirinha de pano daquela tem uma história
compartilhada apenas entre o dono da casa e quem deu os três nós.
As vassouras "virgens" também enfeitadas
com fitas brancas, amarelas e verdes, que representam, respectivamente,
Oxalá, Oxum e Oxossi, iniciam a lavagem do adro. A cada esfregada no
pátio do santuário, é enxaguam-se também os corações e almas dos
devotos.
A essa altura, o
Senhor do Bonfim já observa tudo lá de dentro da Igreja e os olhos dos
Santo parecem dizer o quanto é lindo esse povo que ele há tanto abençoa.
Até a próxima segunda quinta-feira de janeiro.
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